sábado, 28 de novembro de 2009

As ténues formas do invisível


Viu-o aproximar-se, ainda, ao longe. Vinha em velocidade reduzida, dada a proximidade da estação que existia ali bem perto. Era imponente e aterrorizador, um monstro enorme que só quem estivesse naquela situação de desespero, de poder vir a padecer debaixo dele, percebia o temor que podia causar. Aquele comboio aproximava-se de forma lenta, mas ininterrupta. Meio quilómetro separava-o daquele terrível destino que, em angústia extrema, tinha escolhido.

500

Sentia já o tremor debaixo dos pés, a vibração daquele gigante em movimento. As lágrimas vieram-lhe aos olhos, em sua mente uma torrente de lembranças implodia. Desatou num choro sôfrego, copioso, desalmado, recordando tudo: os bons e os maus momentos da vida; os acontecimentos que o tinham levado àquele ponto. O comboio, naquele momento, parecia-lhe imperecível e inevitável. Estava mais próximo, apenas o separavam da morte uns 400 metros.

400

Caiu de joelhos no chão, tolhido pela enorme vaga das recordações que o perpassava. Veio-lhe a lembrança, talvez por se ter também ajoelhado nesse dia, tentando procurar a posição mais solene e romântica possível, de quando, transbordando de amor, pediu Carolina em casamento.

“— Claro que sim, tu sabes que te amo — respondeu-lhe Carolina, naquele fim de tarde de Primavera.”

Os olhos, também, nesse dia se lhe tingiram de lágrimas, emocionado com o futuro que se abria à sua frente. Fazia cinco anos que namorava com Carolina, desde os dezanove, mas muito tempo antes esta lhe tinha invadido o ser. Durante mais de dois anos, procurou chegar-se a ela, encontrando recuos constantes, dúvidas permanentes. Contudo, nunca desistiu. Até que, aconteceu um beijo terno. A partir desse momento construíram um saboroso e genuíno amor que, naquela tarde, se transformava em noivado.

Naquele fim de tarde de Primavera, num extenso relvado à beira de um lago, esqueceram-se de tudo e de todos: os lábios de ambos percorreram, em êxtase, território amado, flutuando no corpo um do outro. Com o toque dos dedos trocaram segredos feitos de carícias; e, quando os dois eram apenas um, sentiram a explosão do corpo que os elevou como nunca antes.

Aquela lembrança trouxe-lhe uma dor ainda maior: nunca mais sentiria aquela doce sensação de amar e ser amado; aquele monstro negro continuava a aproximar-se. Não seriam mais de 300 metros os que o separavam da morte.

300

Por um momento hesitou, perante aquela terna recordação. No entanto, não estava perante aquele vil monstro por acaso. Todo um conjunto de vivências o tinham trazido para este momento, em que esperava que o aço lhe dilacerasse a carne e lhe levasse o espírito para longe. Não se matava na esperança de encontrar o paraíso. Queria apenas encontrar o vazio, fugir a tudo o que, sem tréguas, o fazia sofrer.

Perante a consolidação do casamento sentiu como que um chamamento. Um chamamento de alguém que ainda não existia, mas que lhe gritava no seu íntimo: deixa-me nascer do vosso amor. Sentiu a grande vontade de ser pai e, para sua felicidade, Carolina sentia essa mesma vontade de ser mãe. Tentaram e, até para seu espanto, pela rapidez com que tinha acontecido, Carolina numa manhã inesquecível disse-lhe: Fiz o teste, deu positivo, vamos ser pais.

E que extremosos pais seriam se, dois meses depois, o fruto do amor dos dois não tivesse acabado num aborto espontâneo. Sofreram, mas acreditaram poder ultrapassar aquela perda, que, para eles, não era apenas um feto em formação, mas um filho que faleceu, com a terrível agravante dor de não o terem conhecido.

Nunca tinha pensado muito em Deus ou nas religiões, não se diria ateu, de forma alguma. De certa forma, nunca se tinha preocupado muito com essa questão da religião. Se lhe perguntassem, diria que, perante o esforço que fazia para ser um homem da ciência, que não acreditava em algo não terreno. Contudo, era um assunto em que não fazia questão de se definir.

No entanto, dois anos e meio depois, quando o segundo filho não sobreviveu ao parto, gritaria bem alto: Odeio-te Deus, odeio-te…

Foi esse ódio que o manteve firme na linha, quando aquele colossal monte de aço se aproximou ainda mais, rugindo sons que lhe chegavam aos ossos. Estava agora bem perto: não seriam mais de 200 metros para se poder evadir de todo o sofrimento.

200

Um acontecimento daquele tipo não produz no Homem a dor mais terrível que este pode sentir, é muito pior do que isso: é como uma montanha de podre que o invade por completo e não lhe deixa espaço para nada mais, que não o desespero absoluto e constante. É um tipo de desespero que não pode ser atenuado, que não pode ser sangrado, que ficará para sempre impregnado, como se passasse a pertencer ao seu ADN.

Com aquela dor veio uma doentia apatia perante a vida. Ao contrário do que se podia, primeiramente, pensar, Carolina reagiu melhor àquela tragédia e procurava resgatá-lo daquele seu estado. Contudo, rapidamente percebeu que nada podia fazer: já não era o mesmo homem com quem tinha casado. A pequena firma que, com tanto esforço, tinha construído, em menos de um ano faliu. Nada fez para o evitar. Vivia, agora, de um pequeno subsídio do governo. Passava semanas sem falar com Carolina.

Carolina porque me abandonaste? Pensou quando o comboio estava cada vez mais perto. Não seriam, já, mais de 100 metros entre ele e a escuridão total que esperava atingir.

100

Como qualquer guerreiro perante o início de uma batalha, vacilou por um segundo, não queria desistir da sua ideia de morte e sentir-se um cobarde, mas, por um momento, desejou que o maquinista o visse e travasse aquela máquina que lhe traria a morte. Tal não aconteceu. De modo a não perder a coragem de enfrentar o fim, lembrou aquele dia que talvez tivesse sido o golpe fatal que o destino lhe desferiu, quando encontrou Carolina nos braços de outro homem.

Não lhe conseguiu dizer uma única palavra, nada. Não se irou, não gritou, nem sequer um ténue movimento mais brusco. Virou costas e fugiu, enquanto Carolina a chorar lhe dizia: Estava tão sozinha, sentia-me tão sozinha…

Ali estava o fim, bem à sua frente. O Comboio estava a menos de 10 metros de si. Nada mais havia a lamentar. Já não valia a pena ponderar. Já nada estava nas suas mãos.

10

Entregou-se. Deixou-se. Largou-se. E nesse segundo de desprendimento total pela vida, algo que não sabia bem o que era, numa centésima de segundo o invadiu. Foi como um relâmpago que lhe lançou um dominó de pensamentos que não sabia de onde vinham: Não tenho nada, e esse não tenho nada desaguou num, não tenho nada a perder, e esse fez-lhe ocorrer outro, eu já estou morto, e quando o aço estava já tão perto de lhe trespassar a carne e o levar, se já estou morto, talvez possa renascer.

Mil explosões se deram nesse momento, como se um dia todas as estrelas se voltassem a juntar e acontecesse outra grande explosão de origem do universo, pois sentiu um toque de algo maior que não compreendia, mas que, sem dúvida, o inundou. Pela primeira vez na vida sentiu-se abraçado por Deus, esse mesmo que tinha amaldiçoado. Não seria humanamente possível desviar-se do comboio que estava, já, praticamente colado a si. Contudo, as forças do visível abstiveram-se de actuar e vieram as do invisível que, inacreditavelmente, o fizeram saltar para fora da linha.

Sem morrer, naquele dia renasceu.

Caminhou à beira daquela linha férrea o resto da tarde procurando perceber o que tinha acontecido. Sem, ainda, nada entender, e muitos anos depois, deu por si a sorrir.